Contribuições sociológicas para compreender o golpismo dos patriotas

Por Jonas Medeiros

Entre o final de outubro de 2022 e o início de janeiro de 2023, o Brasil viveu uma campanha golpista de contestação do resultado da eleição presidencial. O que a sociologia tem a contribuir para aprofundar e complexificar o debate público em torno da compreensão deste fenômeno? Neste artigo, vou abordar quatro contribuições: revelar a racionalidade das ações sociais; refletir sobre a relação entre meios e fins; investigar a interação entre a base deste movimento e as suas lideranças; e, por fim, lembrar que valores são produzidos e internalizados em instituições socializadoras.

Você, que está me lendo, deve ter visto uma notícia circulando de que os patriotas reivindicaram na capital do Rio Grande do Sul uma “intervenção extraterrestre”. Você sabia que isto é uma fake news? O que os manifestantes estavam efetivamente fazendo era uma performance de protesto: seus corpos formavam um “SOS” e seus celulares piscantes em cima de suas cabeças estavam sendo registrados sob forma de vídeos e fotos por um drone à distância – exatamente da mesma forma como vi em outras cidades pelo Brasil. Por fim, eles não estavam clamando a um “general marciano”, mas a um general bastante terrestre: o Comandante Militar do Sul, chefe do quartel em Porto Alegre. Isto mostra que nem mesmo a elite intelectual progressista está livre de cair em fake news. E a primeira contribuição que a sociologia pode fazer é romper com determinadas formas de senso comum que acreditam ser um conhecimento preciso da realidade social, mas, na verdade, acabam funcionando como obstáculos epistemológicos.

De um ponto de vista de um certo senso comum progressista, autodenominados “patriotas” são estigmatizados de loucos, malucos, burros e estúpidos. Ao contrário do que acreditam e defendem analistas e comentaristas, seja na grande imprensa, seja nas redes sociais, eles não são irracionais. Qual é, então, a racionalidade das ações sociais dos patriotas? Em primeiro lugar, os bloqueios nas rodovias e as vigílias que se tornaram acampamentos na frente dos quarteis funcionaram de forma extremamente eficiente no sentido de uma gestão racional das emoções. Em questão de poucos dias e até mesmo horas, o campo bolsonarista conseguiu reverter de forma massiva as emoções em torno do resultado do 2º turno, que legitimamente deu a vitória eleitoral a Lula. Por meio de práticas e discursos, nas ruas e nas redes, as emoções dominantes deixaram de ser negativas (tristeza, melancolia e resignação) e passaram a ser positivas (alegria, esperança e confiança).

Além disso, outra dimensão da racionalidade das suas ações sociais se torna evidente quando consideramos a interpretação que os patriotas têm da história política brasileira. Seria irracional clamar por uma intervenção militar, quando diversas mudanças de regime político se deram em nossa história sob a forma de golpes militares? A passagem da monarquia para a república (1889), o começo (1930), a radicalização autoritária (1937) e o fim (1945) do primeiro Governo Vargas, bem como a abolição da democracia pelo golpe militar de 1964. O que singulariza os patriotas com relação à nossa historiografia é a atribuição de significados puramente positivos a estas intervenções militares. No decorrer da campanha de contestação da eleição, começaram a se tornar cada vez mais recorrentes vídeos com pessoas idosas que tinham participado de manifestações de rua golpistas nos anos 1960, o que reforçava um vínculo emocional e valorativo de memória social e política com o legado autoritário da ditadura. Tal campanha dos patriotas permitiu a massificação de expressões golpistas e a hegemonização durante semanas do campo conservador-reacionário pelo intervencionismo militar, uma corrente que esteve nos protestos da direita desde 2015, mas sempre de modo bastante minoritário.

Uma segunda contribuição da sociologia vem dos estudos de movimentos sociais e de ação coletiva, que permitem enxergar nuances e complexidades na relação entre meios e fins para muito além das noções de psicologia de massas ou de manipulação vertical do inconsciente de pessoas que são reduzidas no debate público digital a “gado”. Os repertórios de ação coletiva mobilizados na campanha golpista foram múltiplos e plurais, mas podem ser analiticamente organizados em dois polos: “manifestações pacíficas e ordeiras” e “desobediência civil”, para utilizar expressões reivindicadas pelos próprios patriotas.

Eu tenho interpretado sociologicamente o primeiro polo também em diálogo com a sociologia da religião: protestos, vigílias ou acampamentos na frente de quarteis espalhados por todo o Brasil foram rituais coletivos nos quais os patriotas se reuniam para cantar e orar por uma intervenção militar, em uma esperança messiânica de que as Forças Militares pudessem salvar o país em um quase milagre – isto significou que o clamor por intervenção militar sempre foi metade golpista, terreno e imanente e uma outra metade religiosa, divina e transcendente.

O segundo polo se baseou em ações diretas, isto é, repertórios mais confrontacionais e disruptivos. Muito antes dos acontecimentos centralizados em Brasília – o 8 de janeiro (a invasão das sedes dos três poderes), do 24 de dezembro (tentativa terrorista de explodir uma bomba em um caminhão cheio de querosene em direção ao aeroporto) ou mesmo do 12 de dezembro (tentativa de invadir a sede da Polícia Federal para libertar um líder indígena preso, além de atear fogo em carros, ônibus e um posto de gasolina) – os patriotas saíram do repertório relativamente passivo e pacífico na frente dos quarteis e partiram para bloqueios em rodovias, utilizando pneus, terras, miguelitos e incêndios.

Independente se os meios utilizados pelos patriotas foram mais “pacíficos” ou mais “violentos”, todos eles visavam um mesmo e único objetivo radical e autoritário: um golpe militar que subvertesse o resultado eleitoral. E independente do nome dado pelos patriotas – “intervenção militar”, “intervenção federal”, “Artigo 142” – a expectativa também era sempre a mesma: a de que um golpe militar “pacificasse” e re-ordenasse o país, ao lado de uma disposição belicista, isto é, o desejo de que uma guerra civil nacional e internacional eclodisse, uma ideia de inspiração cristã em uma vertente apocalíptica, escatológica e milenarista – instaurar o caos e a desordem para que o exército, engajado em uma missão divina, restaurasse a lei e a ordem.

Uma terceira contribuição da sociologia é complexificar a visão de como interagem a base do movimento golpista e as suas lideranças. Existe uma noção que circula intensamente de que as pessoas seriam manipuladas verticalmente por meio das redes sociais pela família Bolsonaro ou mesmo por atores internacionais, como Steve Bannon. Contudo, acompanhando a dinâmica em uma rede social como Facebook por meio de uma etnografia virtual, também consegui detectar uma relativa agência cultural e política por parte dos patriotas.

Mesmo a modulação entre meios e fins sempre esteve em aberto na campanha golpista: os eventos de 8 de janeiro não foram um raio em céu azul, mas também não estavam pré-determinados desde o primeiro dia da campanha. Inclusive, o exemplo da invasão do Capitólio nos EUA em 6 de janeiro de 2021 sempre esteve no horizonte nos debates reflexivos no interior dos públicos bolsonaristas, de modo geral em uma chave manifestamente negativa. A posição majoritária no interior do campo conservador-reacionário durante os meses de novembro e dezembro de 2022 era que sair da frente dos quarteis e se dirigir à Praça dos 3 Poderes era um erro estratégico, pois eles perderiam a proteção das Forças Armadas (que, de fato, se engajaram ativamente na defesa da sua liberdade de manifestação, mesmo protestando em terreno público no qual não poderiam estar) e poderiam ser criminalizados (como, de fato, foram, mas só depois do 8 de janeiro).

O silêncio público de Bolsonaro também foi fruto de um aprendizado político com o Capitólio original, devido às consequências não apenas políticas, mas também judiciais que a extrema-direita estadunidense está sofrendo (e que Trump pode ainda sofrer). Tudo isto não significa dizer que Bolsonaro não tenha responsabilidade (política e jurídica) na campanha golpista, afinal de contas ele passou meses semeando a desconfiança nas urnas eletrônicas, na justiça eleitoral e nos institutos de pesquisa, o que fomentou a realidade paralela de que sua derrota eleitoral seria impossível de acontecer nos marcos de uma eleição justa e transparente. E Bolsonaro praticamente confessa seus crimes ao dizer em sua live: “Como foi difícil ficar dois meses calado, trabalhando para buscar alternativas”. Mas afinal de contas, que alternativas foram buscadas? Com a descoberta pela Polícia Federal de uma minuta golpista na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres e a revelação de uma reunião entre Bolsonaro e dos então congressistas Daniel Silveira e Marcos do Val, começamos a ter indícios dos caminhos concebidos para tais alternativas golpistas.

Uma última contribuição que a sociologia pode dar para a compreensão da campanha golpista é também complexificar a forma de enxergar a interação entre Jair Bolsonaro e as Forças Armadas, uma relação que contém tanto continuidades e identificações político-ideológicas, quanto contingências e conflitos. Um dos eixos que estruturaram o Governo Bolsonaro entre 2019-2022 foi o projeto de reconstruir a legitimidade da presença pública e política das Forças Armadas por parte de uma geração de generais que alcançou o Alto-Comando do Exército durante os governos do PT e que depois entraram oficialmente para a política institucional desde o Governo Temer, como os generais Heleno, Villas Bôas, Mourão, Etchegoyen, Braga Netto, dentre tantos outros. Como explicou Eduardo Villas Bôas em sua entrevista ao historiador e antropólogo Celso de Castro, uma das principais motivações para tal projeto era o profundo incômodo dos militares com a esfera pública constituída depois de 1988, com protagonismo dos movimentos indígenas e ambientalistas, revelando o seu frágil compromisso com a democracia.

Em novembro de 2022, os três comandantes das Forças Armadas se pronunciaram publicamente por meio de nota defendendo explicitamente a liberdade de manifestação dos patriotas e implicitamente a si mesmos como um poder moderador. Até o momento, não presenciamos pronunciamentos públicos semelhantes no sentido de desmentir, deslegitimar e até mesmo criticar a pauta golpista dos patriotas nem de condenar toda a destruição envolvida no 8 de janeiro. No seu último dia como vice-presidente, Hamilton Mourão chegou a criticar em pronunciamento nacional o silêncio de Bolsonaro, o que alimentou a força do intervencionismo militar entre a extrema-direita. Contudo, ele próprio contribuiu para esta situação ao aventar a possibilidade de intervenção militar em uma palestra em 2017 bem como de um autogolpe se ocorresse uma “revolta popular” em entrevista em 2018.

As Forças Armadas não são apenas uma burocracia militar, mas também uma instituição social; enquanto elas não passarem por um processo profundo de revisão da forma como ela socializa as novas gerações de militares, a chama da memória de 1964 como algo desejável continuará acesa tanto dentro quanto fora dos quartéis. Por este motivo, o golpismo só será combatido de modo mais estrutural quando os militares forem, eles próprios, ressocializados pela democracia.

Jonas Medeiros é cientista social, doutor em Educação pela Unicamp, pesquisador do Cebrap e co-autor de The Bolsonaro Paradox (Springer, 2021)